Thursday, August 17, 2017

Os impasses em torno de um ritual boliviano de lutas

FABIANO MAISONNAVE

Aos quatro anos, José Luiz Cruz caminhou com os pais por cerca de uma hora até a praça central do vilarejo de Macha, no altiplano boliviano. O filho de camponeses, vestido em coloridos trajes bordados, marchou e dançou com o seu grupo em volta da praça principal. Depois, foi colocado em um círculo e, incentivado pela comunidade, trocou socos com outra criança do seu tamanho.

Era a primeira vez que Cruz, hoje com 27 anos, participava do Tinku ("encontro", em quéchua), festa ritual realizada principalmente no norte do departamento de Potosí. "Desde então, só perdi um Tinku, porque estava no Exército", contou ele à Folha, a dois dias do ritual, que, em Macha, costuma ocorrer no início de maio.

Não se sabe quando o Tinku começou a ser celebrado, mas os primeiros espanhóis que chegaram à região, no século 16, o descreveram. Apesar de sua rotina de lutas sangrentas e mortes, persiste como a celebração anual mais aguardada da região.

Fora dessa data, Macha e seu entorno, de altitude média de 3.500 metros acima do nível do mar, sobrevive da agricultura de subsistência, praticada em pequenas faixas de terra incrustadas em montanhas pedregosas. Algumas comunidades só falam quéchua, e as mais distantes estão a até quatro horas do "casco urbano", de apenas 2.000 habitantes.

Desde o período colonial, o ritual vem sofrendo modificações, sendo a mais visível a homenagem a Cristo, a ponto de também ser conhecido como Festa da Cruz.

Outra mudança, mais recente, tem a ver com a presença de policiais. Nos anos 1970, durante a ditadura militar, o governo enviou tropas do Exército para tentar impedir o Tinku. A partir daí, explica o antropólogo italiano Michele de Laurentiis, que defendeu um doutorado sobre o tema na Universidade de Messina, a participação das forças de segurança foi "se institucionalizando" e atualmente é negociada entre líderes camponeses e os governos locais.

Nos últimos anos, coube ao presidente do país, Evo Morales, tentar influenciar o Tinku.

Ao mesmo tempo em que se tornou protegido por uma lei, o rito vem sendo relido pelo governo, por meio do vice-ministério da Descolonização. Segundo essa revisão oficial, a violência foi introduzida ao ritual pelos espanhóis -o problema é convencer os camponeses disso.

PACHAMAMA

No primeiro domingo de maio, membros de cerca de 70 comunidades rurais lotaram as ruas de Macha para render homenagem a Jesus Cristo e a Pachamama (mãe-terra), dançar ao som do charango (instrumento de cordas) e da jula jula (flauta andina). Vão ao local para confraternizar, cortejar, consumir grandes quantidades de chicha caseira (bebida alcoólica feita do milho), batizar os filhos na igreja -e, sobretudo, para tomar parte de sangrentas brigas individuais e coletivas que às vezes terminam em morte.

Para o Tinku deste ano, foram enviados 54 policiais a Macha. Empunhando chicotes no lugar de cassetetes, eles organizaram centenas de lutas entre camponeses, moderando a violência.

A grande preocupação é evitar os óbitos, bastante frequentes até poucos anos atrás. Caso ocorram, porém, não há inquérito. Durante o Tinku, o que vale é a Justiça originária, baseada na lei indígena e que, pela nova Constituição boliviana, ocupa o mesmo nível hierárquico que a Justiça comum.

A rotina se repetiu durante todo o dia: aos gritos de "cancha, cancha" e distribuindo chicotadas, os policiais formam um pequeno círculo em meio a dezenas de camponeses divididos entre as comunidades (ayllus) de cima e as de baixo, de acordo com sua posição na formação da roda.

Trocas de olhares, provocações e dedos apontados são os signos usados para acertar as brigas entre membros de cada grupo. Concedida a autorização policial, os oponentes entram no círculo e passam a trocar socos freneticamente -os poucos que levantam guarda ou se esquivam, como no boxe, são ridicularizados pelo adversário e até retirados da luta.

A briga dificilmente chega a durar um minuto: quando um oponente cai ou está perdendo, os policiais retomam os chicotes para afastar os contendentes, aos gritos de "basta". Quase todos saem sangrando, às vezes profusamente. Alguns precisam ser carregados.

Os desafios envolvem todas as faixas etárias e mulheres, embora a maioria seja entre homens jovens e de meia-idade. A reportagem só presenciou duas lutas entre mulheres e nenhuma de crianças.

Os cerca de 20 estrangeiros presentes, entre turistas e jornalistas, eram recebidos com reações variadas. Muitos se incomodavam com as câmeras, outros ofereciam entrevista em troca de dinheiro e uma minoria se prestava a explicar o Tinku espontaneamente ou convidava para tomar um trago.

Um fotógrafo espanhol aceitou chichas demais. Embriagado, levou socos e teve a câmera roubada. A subprefeitura foi avisada e conseguiu devolver o equipamento no dia seguinte, salientando que, "em Macha, nada se perde".

Na praça, a intensidade das provocações entre os dois grupos costuma aumentar até as brigas se multiplicarem e se transformarem numa batalha campal. A polícia lança mão do spray de pimenta, enquanto as mulheres tentam separar brigas dos maridos com chicotes ou varetas.

Quando tampouco isso é suficiente ou se os grupos começam a lançar pedras, chega a vez do gás lacrimogêneo. A correria e a dispersão duram apenas alguns minutos, até os policiais recuperarem o fôlego e organizarem novamente a "cancha".

PLURALISMO

"A lei fica sem efeito um dia por ano", explica o diretor de assuntos jurídicos do Ministério de Culturas e Turismo, Marvin Molina. "A polícia não pode impedir o enfrentamento físico, apenas os excessos na realização da cultura originária. É um dos poucos lugares do mundo onde se vive o pluralismo jurídico."

A violência é explicada de maneira contraditória pelos participantes. O sangue derramado e a morte são justificados como uma oferenda a Pachamama em troca de uma boa colheita. A briga em si ocorre por "costume", explicam.

Ao mesmo tempo, a intervenção policial não é contestada, embora muitas vezes se revele impotente.
Cruz, que, além de agricultor, está no seu primeiro mandato como vereador pelo partido governista MAS (Movimento ao Socialismo), explica: "Se há luta e sai sangue, é uma homenagem a Pachamama, para que tenha um bom ano na agricultura. Quando morre gente, é um bom ano, um ano produtivo. Quando não morre gente, a produção cai para o ano seguinte. Nestes dois últimos anos sem mortes, tivemos granizo e desastres naturais."

E, no mesmo fôlego, arremata: "Nós, como governo municipal, estamos evitando mortes. Já não deixamos que haja esse problema, porque não podemos fazer do ser humano um brinquedo. Por esse motivo, haverá uns 50 policiais para dar segurança à população."

"Há uma atitude bem ambígua sobre a morte", explica, por telefone, De Laurentiis, que estudou o Tinku de Aymaya, uma localidade vizinha a Macha. "Por um lado, a morte é voltar a nascer e entrar no circuito de reprodução da terra e do cosmo", afirma. "Por outro lado, tentam também prevenir. Há três dias de rituais antes de participar do Tinku. Um deles se destina a saber o que vai se passar no Tinku e criar uma relação com os antepassados para que se evite principalmente a morte."

DESCOLONIZAÇÃO

O caráter violento do Tinku vem representando um desafio para Evo Morales, o primeiro presidente indígena da Bolívia, originário da etnia aimará, que não participa do Tinku. Ele nasceu a algumas dezenas de quilômetros de Macha, embora tenha migrado ainda criança para o distante departamento de Cochabamba, fora do altiplano árido.

A valorização da cultura e da organização indígenas (70% da população boliviana) é um tema central para seu governo. Sob o marco da nova Constituição boliviana, de 2009, o país passou a ser nominalmente um Estado plurinacional. Há um capítulo específico para a "autonomia indígena originária camponesa", dando-lhes direito a criar instituições políticas e judiciárias, além de outros aspectos de autogoverno.

Em 2012, o Tinku de Macha foi contemplado com uma lei específica. Assinada por Morales, ela o declara "patrimônio cultural e imemorial" e encarrega o Ministério de Culturas de fazer a sua difusão. Mas como endossar uma festa ritual que, sem a intervenção externa da polícia, inevitavelmente produz mortos?

O Tinku ficou sob a incumbência do vice-ministério da Descolonização. Criado logo após a promulgação da Constituinte e subordinado ao Ministério de Culturas, tem a missão de superar o legado de "cinco séculos de colonização espanhola e crioula de eurobolivianos - conservadores, liberais, nacionalistas e neoliberais".

O vice-ministério, por sua vez, delegou a missão ao intelectual quéchua Tito Burgoa, que estuda o ritual desde 2002. Por volta de 2010, ele preparou a candidatura do Tinku a patrimônio cultural da Unesco, iniciativa rejeitada pelo organismo da ONU por causa da natureza violenta do evento.

Em palestra ao punhado de turistas e jornalistas que havia viajado à isolada Macha (a localidade fica 450 km ao sul de La Paz, percorridos em 11 horas), ele atribuiu a violência do Tinku à colonização espanhola e, mais recentemente, às centenas de bolivianos que emigram para a Argentina e depois retornam. Disse ainda que o ritual começou por volta de 4.000 a.C., embora não haja registro histórico antes do século 16.

"A luta existia antes dos espanhóis, mas depois perdeu o conceito de jogo", disse Burgoa. "Foi a Igreja que impôs a batalha campal para defender as suas fazendas e para entreter as suas festas."

Agora, afirma, a presença da polícia é necessária por causa de "gangues e delinquentes" vindos dos grandes centros. "A contaminação cultural é terrivelmente negativa, o problema atual da briga vem das grandes cidades."

Questionado sobre a ligação entre mortes e boa colheita, Burgoa disse que nem sequer os camponeses conhecem o que ele chama de Tinku histórico. "Estamos no período de descolonizar, de reiniciar com mentalidade própria. Todas as comunidades, todos os habitantes daqui perdemos a memória histórica."

O arrazoado de Burgoa destoa bastante do que dizem os participantes do Tinku, incluindo os mais antigos. "Claro que a luta é a parte mais importante da festa", afirmou Policarpo Cruz, 61, que lutou pela primeira vez aos dez anos.

"Há muito pouca diferença entre o Tinku de agora e o da minha infância. O problema, agora, é que as pessoas já se civilizam, chegam com poucas vestimentas", disse, em referência aos vários participantes sem os trajes bordados e que dispensam o uso da "montera", espécie de capacete feito de couro. "Mas a luta é a mesma."

Para o antropólogo e padre jesuíta Xavier Albó, tido como um dos maiores especialistas do mundo na cultura indígena boliviana, é equivocado atribuir a violência na região à chegada dos espanhóis.

"Tem havido violência antes e depois da colônia. Isso de pensar que toda a violência vem da colônia é uma ideologização recente", afirmou, por telefone.

Albó, espanhol radicado na Bolívia desde os anos 1950, afirma que o governo ainda não tem claro o que é "descolonização" e menciona contradições entre essa proposta e a atuação do vice-ministério da Interculturalidade, também ligado à pasta de Culturas. "Da mesma forma que o vice-ministério da Descolonização pretendia eliminar as marcas coloniais, como templos católicos, o de Interculturalidade estava feliz de poder reformar os mesmos templos."


PERTENCIMENTO

O antropólogo italiano De Laurentiis vê no ritual "um idioma corporal para reafirmar seu pertencimento ao grupo", semelhante a eventos de tradição popular que acontecem na Europa, como entre grupos católicos espanhóis.

Segundo ele, o rito serve também para representar disputas existentes entre as diferentes comunidades, principalmente territoriais. "O Tinku é uma maneira de expressar essa rivalidade, mas não se produz nem se resolve ali. É uma teatralização", explicou.

Para De Laurentiis, Morales demonstra pouca familiaridade com o Tinku. Na sua tese de doutorado, ele conta que, em 2012, a comitiva presidencial chegou à região de Aymaya no mesmo dia em que estava marcado o ritual, que, ali, costuma ocorrer no início de outubro.

"Isso causou uma série de problemas às comunidades, que queriam acompanhar a visita de Evo ao seu município, pois era um orgulho ter o presidente ali. Mas quase 90% das pessoas que ouvi na pesquisa estavam na praça onde se lutava, e não na praça onde estava Evo, a 10 minutos de distância dali."

O antropólogo relembra que houve dois mortos nesse dia. "No discurso, Evo disse algo como: 'Vocês não têm de lutar entre vocês, têm de lutar pela revolução e pelo processo de mudanças'. Foi sua única referência ao evento."

"A minha percepção é de que o governo não tem muito conhecimento do que realmente acontece no campo. As referências são apenas o poncho, as produções materiais e a cosmovisão."

EPÍLOGO

Ao final do dia, em Macha, os camponeses se espalhavam por várias ruas adjacentes. Muitos estavam desacordados nas calçadas, ensanguentados e embriagados, geralmente recebendo cuidados de suas mulheres. Outros ainda buscavam briga, mais em clima de bar do que de rito ancestral. Para alívio e preocupação do vereador-camponês Cruz, pelo terceiro ano consecutivo, nenhuma morte foi registrada.



[Fotografia: RODRIGO MACHADO - ilustração: DEBORAH PAIVA - fonte: www.folha.com.br], 01/06/2014

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De SEPHATRAD (blog de Isac Nunes), 08/2017

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