Saturday, May 19, 2012

Entrevista a Juan Marsé


 

Em manhã de chuva, Juan Marsé esperava-nos numa livraria do centro de Lisboa, onde na véspera conversara animadamente com António Lobo Antunes, autor do prefácio à versão portuguesa do romance Caligrafia dos Sonhos, editado pela Dom Quixote. Nesse texto curto, afirma Lobo Antunes, sobre o escritor de Barcelona (primeiro catalão a ganhar o prémio Cervantes, em 2008), que se trata de «um dos maiores escritores espanhóis vivos, e não digo o maior porque não os li a todos». Por natureza e temperamento, Marsé esquiva-se aos elogios deste tipo e não atribui qualquer importância à consagração literária. O que lhe interessa é a escrita propriamente dita, o labor oficinal de quem burila a frase com o esmero de um ourives. Logo a seguir à II Guerra Mundial, o autor de O Feitiço de Xangai começou justamente por trabalhar numa joalharia, reparando relógios e consertando pulseiras partidas. Hoje, aos 79 anos, continua a considerar-se um artesão e abomina a literatura prêt-a-porter, de consumo fácil. Sentado num cadeirão, com livros a toda a volta, falou do seu território sentimental (os bairros onde cresceu, muito pobres em tudo menos em tipos humanos), dos ecos e ressonâncias que atravessam Caligrafia dos Sonhos, do «imenso poder da imaginação», das dificílimas relações com os vários realizadores que adaptaram os seus livros ao cinema (entre eles Vicente Aranda e Fernando Trueba), bem como do recurso a elementos autobiográficos, que são de certa maneira a face visível das memórias pessoais, propositadamente diluídas na matéria ficcional.
Neste livro, como noutros romances, é descrita a Barcelona do pós-guerra (anos 40): o tempo e o lugar da sua infância, da sua adolescência. O que o leva a regressar tantas vezes a este cenário?
É de facto uma cenografia que se repete em muitos romances. Não em todos, mas em boa parte deles. Creio que se trata, no fundo, de um território pessoal. Mas um território que não corresponde exatamente à realidade. É uma mistura de três ou quatro bairros que conheci muito bem, entre Gràcia e o monte Carmelo.
Um território sentimental.
Logicamente. O que procuro num romance são as emoções e os sentimentos. Sem eles não conseguiria escrever ficção. A sociologia interessa-me muito, mas não como género literário.
O impulso para a escrita é o exercício da memória?
Sim, mas uma memória que nunca corresponde de forma linear aos acontecimentos reais. Não foi minha intenção escrever um relato objectivo sobre o que era Barcelona naquele tempo. Falo da vida de bairro porque foi a vida que conheci. Há escritores cujas obras seriam iguais ao que são, ou semelhantes, caso tivessem nascido noutro lugar. Isso não se passa comigo. Parece-me evidente que a paisagem dos livros que escrevi está muitíssimo vinculada à minha experiência pessoal.
Na primeira cena de Caligrafia dos Sonhos, assistimos a um suicídio simulado e algo patético. Uma mulher deita-se dramaticamente no meio da rua, sobre os carris de um elétrico que há muito não passa por aquela «via morta». A imagem dos carris emergindo de uma «pequena ilha de paralelepípedos melancólicos», formando uma «linha truncada que vem do ontem abolido e não vai a lado nenhum», ilustra na perfeição a vida da maioria das personagens, um grupo de pessoas que nunca saem daquele microcosmos e parecem irremediavelmente presas a um determinado tempo.
Sim, sem dúvida. Mas não me dei logo conta disso. Quando percebi, lembrei-me de incluir outro elemento: a escada que existe em pleno monte, com três degraus escavados na pedra que também não levam a lado nenhum. E que ninguém sabe porque estão ali. Há uma certa simetria entre os degraus e os carris do elétrico. Não a sei explicar, mas ela cria aquele tipo de ecos e ressonâncias que são essenciais na literatura de ficção.
O protagonista do romance é um rapazito que lê muito, um exímio narrador capaz de inventar histórias mirabolantes a partir dos livros de aventuras e dos filmes que vê nos cinemas do bairro.
Contar histórias era o nosso principal divertimento. Na altura, havia uma tremenda escassez de tudo. E também de brinquedos, claro. Se não tínhamos uma bola para jogar, nem sequer uma feita de trapos pelas nossas mães ou avós, muito menos um par de patins ou uma bicicleta, sentávamo-nos a contar histórias uns aos outros, relatos em que se misturavam os enredos dos
westerns com situações de que ouvíamos falar em casa. Naquela época de forte repressão por parte do regime franquista, havia sempre um parente escondido em qualquer parte, ou alguém próximo que tinha sido preso ou morto.
As histórias imaginadas e as reais misturavam-se?
Inevitavelmente. É algo que está muito presente noutro romance meu: 
Si te dicen que caí (de 1973, nunca publicado em Portugal). Nesse livro, as aventis, histórias em que se mistura realidade e imaginação, são as células a partir das quais cresce toda a trama romanesca. Em Caligrafia dos Sonhos, asaventis estão limitadas a um só capítulo. Funciona mais como homenagem à ideia de literatura. Um dos rapazes do grupo põe em causa o modo fantasioso como Ringo (o protagonista) narra as histórias, dizendo que se um cavalo tem quatro patas não lhe podemos atribuir cinco, e que não faz sentido imaginar um combate contra índios nas praias do Arizona, porque no Arizona não há praias. Ao que Ringo responde da única forma possível. Ou seja, explicando que nas suas histórias existem praias onde ele muito bem entender.
É o poder da imaginação?
Nem mais. É o imenso poder da imaginação. Quem conta uma história não se pode contentar com a realidade, tem sempre de ir um pouco mais além. Isto é tanto verdade para o rapaz que deseja impressionar o seu círculo de amigos como para o romancista. Qualquer romancista.
Mas o ir mais além também pode redundar numa impostura. A dado passo da narrativa, Ringo inventa uma carta de amor que é uma mentira com efeitos drásticos na vida de outras pessoas.
O tema central do livro é justamente esse. O que conduz um rapaz honesto à impostura e de que modo essa impostura o reconcilia com uma realidade que sempre desprezou, ou da qual se sentia excluído. Trata-se, muito simplesmente, de um modelo clássico: o romance de iniciação, de aprendizagem.
Continua a defender a natureza oficinal da escrita?
Claro que sim. Não a concebo de outra maneira. E acho mesmo que uma das grandes obrigações do escritor, hoje, é lutar contra a literatura 
prêt-a-porter, de consumo fácil. O verdadeiro desafio é resistir a esse tipo de literatura industrial. Sou e serei sempre um artesão.
Há um momento em que Ringo está num café e olha pela «vidraça do tempo». Qual é a maior dificuldade associada a este olhar?
Eu diria que se escreves a partir de acontecimentos reais, enxertando na ficção aquilo a que podemos chamar crónica urbana, é conveniente não falsear. Ao falseares, corres o risco de ser desmentido pela memória que as pessoas guardam dos factos.
As relações com os realizadores de cinema que adaptaram as suas obras foram sempre muito tensas, muito difíceis. Porquê?
Tento sempre explicar-lhes que o problema dos filmes não está em serem pouco fiéis ao que eu escrevi. Pelo contrário, está em serem demasiado fiéis.
Não gostou de nenhuma das adaptações?
Não. Há talvez algumas menos más. Os realizadores parecem esquecer que os filmes têm a sua própria dinâmica narrativa, estritamente cinematográfica. Se for preciso trair o livro, façam-no. Mas na verdade nunca me traem o suficiente. Seria preciso deixar cair algumas personagens, algumas situações, criar outras novas. Os cineastas deixam-se enganar pela aparente simplicidade da minha escrita. Pensam que basta transpô-la para o ecrã, tal e qual. Ora, uma coisa é o que está escrito para ser lido e outra coisa é o que está feito para ser visto num ecrã.
Parte dessa ilusão de facilidade talvez se deva ao seu talento descritivo. Narra tudo de forma minuciosa, muito clara, muito visual.
Sim. A minha escrita é muito visual. Gosto de dar a ver as coisas ao leitor. Não dizer como é, não explicar, mas dar-lhe a entender o que se passa através da acção. Gosto que sejam as personagens a dar-se a ver. Por exemplo, não afirmar que um avaro é avaro, mas focar um aspecto da sua conduta através da qual a sua avareza se torne evidente. O leitor concluirá por si mesmo.
Na última frase do romance, o protagonista é descrito como um «rapaz tão observador». Ele passa a vida sentado, a ouvir o que se passa na existência quotidiana dos outros. Ao tornar-se escritor, leva ao extremo esse talento inato para a observação.
Precisamente. O escritor tem de ser muito observador, tem de ter muita curiosidade. Mas essa frase final ganha conotações irónicas, quase burlescas, porque aquele rapaz acaba de descobrir, dez anos depois, a verdade sobre a história de amor em que se viu envolvido. E essa verdade refuta a sua versão dos acontecimentos. De modo que ele não era afinal um observador assim tão bom. Eis a última lição do seu processo de aprendizagem: é preciso ter cuidado com a realidade, porque as coisas raramente são aquilo que parecem ser.
Geralmente são mais complexas, mais contraditórias. Veja-se a personagem do pai de Ringo. Anarquista, anti-clerical, quase sempre ausente. Imaginamo-lo a preparar uma revolução e no fim de contas é apenas contrabandista.
Essa personagem já aparece de outras formas em romances anteriores, como
Rabos de Lagartixa. Relaciono-o com certas histórias que me contavam em pequeno, sobre amigos ligados à resistência antifranquista. Muitos começavam por passar pessoas através da fronteira com França, durante a II Guerra Mundial, e depois convertiam-se em contrabandistas, para ganharem a vida. São anti-heróis, militantes cuja deriva por vezes os levava até à delinquência. O meu pai conheceu vários durante o tempo em que esteve preso.
Mais do que noutros livros, abundam neste os elementos autobiográficos.
Às vezes perguntam-me quando é que penso escrever as minhas memórias. E eu respondo sempre que as minhas memórias estão nos meus romances. Mascaradas, diluídas, mas estão lá. Neste romance talvez haja mais factos reais da minha vida do que em outros. É verdade. Não sei dizer porquê.
A que se deve o recurso à narração na terceira pessoa?
Quando começas uma narrativa, tens de encontrar a voz certa. E essa voz é que pede para ser escrita na primeira pessoa ou na terceira. Eu só me pergunto qual é aquela em que o leitor mais acreditará. Neste caso, não narro na primeira pessoa porque ficaria preso a um só ponto de vista. Não me recordo em que momento o decidi, mas em todos os romances acontece o mesmo. Há um momento em que percebes que tem de ser assim e não de outra maneira. Sucede o mesmo com o tom, o estilo. Tens de o encontrar. Ou mais distanciado e irónico, ou mais directo. Ou com outras vozes.
Caligrafia dos Sonhos foi o primeiro romance publicado após a atribuição do prémio Cervantes. Que importância atribui a esta consagração?
Nenhuma. A responsabilidade diante do leitor é exactamente a mesma. A figura do escritor consagrado para mim não significa nada. Basta recordar alguns génios que nunca ganharam prémios importantes para saber isso.
Sente que a vocação da escrita foi uma dádiva na sua vida?
Acho que era Truman Capote que dizia: o escritor, quando nasce, recebe de Deus uma flor, mas também um chicote. A literatura é trabalho, é esforço. E o leitor não tem de se aperceber desse esforço. Escrever é como fazer uma cadeira. Quem compra a cadeira não tem de saber o que sofreu, ao fazê-la, o homem que construiu a cadeira.
[Entrevista publicada no suplemento Actual, do jornal Expresso]
Fotos: Juan Marsé

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